Após derrota em plebiscito, Boric muda cúpula do governo no Chile
Menos de 48 horas após os chilenos rejeitarem, por ampla maioria, a proposta de uma nova Constituição de viés progressista, o presidente do Chile, Gabriel Boric, anunciou nesta terça-feira uma reforma de seu Ministério. A mudança, a apenas seis meses do início de governo, remove dois antigos aliados de Boric de cargos-chave e inclui na cúpula do Gabinete duas expoentes do Partido Socialista (PS) e do Partido pela Democracia (PPD), de centro-esquerda, ambas próximas à ex-presidente Michelle Bachelet.
O PS e o PPD, que hoje formam o bloco chamado de Socialismo Democrático, já apoiavam o governo e tinham ministros, mas em pastas que não fazem parte do chamado comitê político, instância do governo chileno na qual são tomadas as principais decisões.
— Quero que saibam que faço essa mudança de Gabinete pensando em nosso país. As mudanças de Gabinete sempre são dramáticas em nosso país, e essa tinha que doer. E dói porque era necessária — afirmou o presidente após o anúncio da reforma. — Esse é um dos momentos mais difíceis que tive que enfrentar politicamente, mas seguiremos adiante, em conjunto, pelos chilenos e chilenas e pelo Chile.
Na lista dos que saíram ou mudaram de posição estão dois políticos jovens que acompanhavam Boric desde o movimento estudantil e de sua campanha a presidente: a médica e ministra do Interior, Izkia Siches, de 36 anos, e o secretário-geral da Presidência, Giorgio Jackson, de 35 anos. Carolina Tohá, de 57 anos, experiente quadro do PPD, assumiu o Ministério do Interior no lugar de Siches, e Ana Lya Uriarte, de 60 anos, do PS, entrou no lugar de Jackson, que irá para a pasta de Desenvolvimento Social.
Com a saída de Siches e a mudança de posição de Jackson, permanecem no comitê político a porta-voz da Presidência, Camila Vallejo, do Partido Comunista, e a ministra da Mulher, Antonia Orellana, da Convergência Social, partido de Boric, além do ministro das Finanças, Mario Marcel, ex-presidente do Banco Central que não pertence à geração do presidente e, ao contrário da equipe inicial, tem sua origem na centro-esquerda, embora não seja filiado a partidos. Além disso, com as mudanças, 15 do total de 24 ministros são mulheres.
— Esta mudança de Gabinete não é só protocolar nem para uma foto, muda também, como é evidente, o comitê político, que é a condução do nosso governo, e muda com a entrada de Ana Lya Uriarte e de Carolina Tohá, para dar maior coesão a nosso governo — disse o presidente chileno, que também anunciou a integração ao comitê político da ministra do Trabalho, Jeannette Jara, do Partido Comunista.
Negociação da nova Carta
No discurso, Boric também falou sobre a rejeição do projeto de nova Constituição, no plebiscito do último domingo.
— Os processos de transformação social são de longo fôlego e as grandes mudanças não se fazem do dia para a noite. Elas precisam ser abraçadas pela grande maioria, não podemos nunca esquecer essa lição da história — disse. — O líder que pretende ir mais rápido do que o povo que representa está equivocado. Temos que caminhar junto ao povo. Ter humildade para escutar e entender, e convicção para defender o processo de mudança.
A principal tarefa da nova secretária-geral da Presidência, encarregada das relações com o Congresso, será negociar a forma de redação de um novo projeto de Constituição. Embora o texto redigido durante um ano por uma Convenção Constitucional eleita tenha sido rejeitado, todas as forças políticas concordam que é preciso escrever uma nova, cumprindo a decisão de um plebiscito em 2020 no qual os chilenos votaram pela mudança da Carta herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Há, porém, divergências sobre a forma de fazer isso: o governo defende a eleição de uma nova Constituinte, enquanto a oposição conservadora quer que o texto seja redigido por uma comissão de parlamentares e notáveis.
Desgaste de aliados
A saída de Izkia Siches do governo vem após o persistente desgaste de sua gestão na pasta do Interior. Siches, que coordenou a campanha presidencial de Boric no segundo turno em 2021, estreou no cargo com uma visita improvisada a uma comunidade mapuche, que terminou em um ataque contra sua comitiva.
Os problemas de ordem pública e as crises de violência em La Araucanía, no Sul do país, uma região de conflito com comunidades mapuche, e de imigração, no Norte, prejudicaram o capital político de Siches. Sua popularidade havia caído de 57% em março para 36%.
Sua substituta, a cientista política Carolina Tohá, ocupou vários cargos em governos de centro-esquerda. Foi deputada, ministra e porta-voz do primeiro governo Bachelet (2006-2010) e prefeita do município de Santiago. Ela havia se aposentado da política, e nos últimos anos passou a ser bastante conhecida como analista.
Tohá assumiu a defesa do projeto de nova Constituição com muita força e sua atuação foi muito valorizada. Ela é uma figura de grande peso político e seu pai, José Tohá, um socialista, foi ministro do Interior e Defesa de Salvador Allende e foi assassinado pela ditadura quando ela tinha oito anos.
Assim como ela, Ana Lya Uriarte, professora de Direito e substituta de Giorgio Jackson, é próxima de Bachelet, que acaba de encerrar seu mandato como alta comissária de Direitos Humanos da ONU e fez campanha pela aprovação da nova Constituição.
A saída de Jackson é uma das mais complexas para o presidente, pois ele é também seu amigo há anos. Juntos, foram líderes estudantis há mais de uma década, chegaram ao Parlamento e fundaram a Frente Ampla. Os problemas de Jackson na relação com o Congresso, onde o governo não tem maioria, tornaram sua permanência insustentável. Sua popularidade, segundo a pesquisa Criteria, caiu de 48% para 37% desde março.
Na reforma ministerial, também deixaram o cargo os ministros María Begoña Yarza, da Saúde, substituída por Ximena Aguilera; Claudio Huepe, da Energia, trocado por Diego Pardow; e Flavio Salazar, de Ciência e Tecnologia, que deu lugar a Silvia Díaz Acusta. Nesses casos, não houve mudanças de partidos: duas pastas continuam sob o comando de independentes (Saúde e Ciência e Tecnologia) e uma (Energia) de um nome da Convergência Social.
O anúncio desta terça atrasou mais de uma hora e por trás do atraso está o nome de Nicolás Cataldo, militante do PC e também ex-líder estudantil. Cataldo havia sido cotado para a Subsecretaria do Interior, mas antigos tuítes seus contra os Carabineiros, a polícia militar chilena, fizeram com que Boric voltasse atrás.
Antes do anúncio da reforma ministerial, centenas de estudantes protestaram do lado de fora do palácio presidencial exigindo mais recursos para a educação. “E a Constituição Pinochet vai cair e vai cair” e “Há dinheiro para a polícia e não para estudar”, gritaram os alunos ao se aproximarem da sede do Ministério da Educação, ao lado da sede do governo.
A manifestação forçou o bloqueio do trânsito e houve alguns incidentes isolados entre parte dos manifestantes e a polícia, que dispersou a mobilização com gás lacrimogêneo e canhões de água.