‘Virei um morador de rua famoso, mas não rico’, diz ator de ‘Cidade de Deus’, 20 anos após o filme
São 3h da madrugada gelada do último sábado, dia 24. O pedinte se aproxima da mesa posta na calçada do Catete, na Zona Sul do Rio, em frente ao trailer de lanches, e se apresenta: “Boa noite. Desculpe incomodar, meu nome é Rubens…”. O vigia local pede para ele não importunar, o homem ensaia partir, mas é bem-recebido pelo advogado que esperava seu hambúrguer ficar pronto: “Chega aí, cara! Está com fome? Quer comer um sanduíche?”. “Não, eu queria mesmo era uma cerveja”, responde o andarilho. A sinceridade surpreendente é a senha para Rubens ser convidado para sentar-se e compartilhar da bebida. Não demora para que outros clientes se aproximem, curiosos: “Você não é aquele ator que fez ‘Cidade de Deus’?”. Ele confirma, pedindo um cigarro para acompanhar. E assim o papo rola até o amanhecer.
Há exatos 20 anos, Rubens Sabino da Silva deixava a sua marca no cinema nacional ao interpretar Neguinho, o garoto que, de arma em punho, questionava: “Porra, Dadinho, como é que tu chega assim na minha boca, meu amigo?”. “Dadinho é o caralho, meu nome agora é Zé Pequeno, porra!”, rebatia o ator Leandro Firmino na pele do traficante. A cena é uma das mais lembradas do filme de Fernando Meirelles, hoje disponível no Globoplay, que retrata o crescimento do crime organizado na comunidade da Zona Oeste carioca.
— Esse diálogo virou música e tudo. E o filme é um dos mais vendidos até hoje, foi indicado quatro vezes ao Oscar. Eu virei um morador de rua famoso, mas não rico, enquanto “Cidade de Deus” arrecadou milhões — sublinha Rubens, emendando: — Na época, ganhei um cachê de R$ 5 mil. Com a nota do contador, passou pra R$ 4,5 mil.
Ele tinha 18 anos quando integrou o elenco do longa-metragem. Desde os 8, quando fugiu da casa onde morava com a mãe e as três irmãs mais velhas, em Santa Cruz, na Zona Oeste, perambulava pelas ruas do Centro da cidade.
— Minha mãe, dona Zilma, era uma baita guerreira. Meu pai era alcoólatra, igual a mim. Quando ele sumia, ela vinha com a gente até a feira da Lapa e esperava o movimento acabar para pegar pelanca de frango. Fritava pra virar torresmo e a gente matava a fome — lembra o carioca: — Nunca mais soube dela. Fugi porque tinha o espírito livre desde piquititinho e porque não aguentava mais apanhar num terreiro que ela frequentava toda sexta-feira. O pai-de-santo tinha o mesmo nome que eu.
Na Lapa, onde passou sua adolescência com um grupo de meninos de rua, Rubinho soube que aconteceria um teste para “Cidade de Deus”, na Fundição Progresso.
— Eu me inscrevi e consegui passar. Fiz laboratório com (os preparadores de elenco) Fátima Toledo e o Guti Fraga. Quem ia no ensaio ganhava vale-transporte e um lanche — lembra ele, contando que já tinha tido outras duas experiências anteriores no audiovisual: — Participei dos clipes da Deborah Blando (“Unicamente”) e do Rappa (“Minha alma”).
Em junho de 2003, quase um ano depois do lançamento do filme, o baque: o ator ganhou mídia novamente ao ser preso após roubar a bolsa de uma mulher dentro de um ônibus na Avenida Niemeyer, Zona Sul do Rio. Na ocasião, justificou o delito dizendo que estava sem comer há vários dias.
— Cometi um crime e me arrependo muito. Eu era muito moleque, fiz essa idiotice. Quando o camarada tem a ficha limpa, pode fazer concurso público. Eu não posso mais — lamenta, citando: — Denzel Washington falou para Will Smith depois da última cerimônia do Oscar (quando ele deu um tapa em Chris Rock ao ouvir piadas sobre a sua mulher): “No seu momento mais alto, tenha cuidado, é quando o diabo vem até você”. Foi o que aconteceu comigo. Depois que eu fui preso, a produção de “Cidade de Deus” me embarcou para Belém do Pará e fiquei três anos internado num centro de recuperação. Como é que um ator assiste à premiação do Oscar de um filme de que ele é um dos principais dentro de uma clínica de reabilitação? Eu vi pela TV a festa acontecendo num hotel aqui do Rio, todos reunidos, e eu afastado. Era pra ser o auge da minha vida. Eu me fechei pra tudo, não tenho contato com mais ninguém do elenco.
Em 2012, Rubens voltou ao audiovisual no documentário “Cidade de Deus: 10 anos depois”, produzido pela Netflix:
— Fiquei muito exposto. Contei toda a minha história, me levaram na Central do Brasil, compraram uns quatro sacos de amendoim pra eu revender e me deixaram na rodoviária. Fui ingênuo, continuei na mesma, pedindo esmola na rua. Não quero mais ser visto como coitadinho.
O diretor Cavi Borges, no entanto, afirma que pagou pela participação do ator na obra.
— A gente tirou dinheiro do próprio bolso para bancar o documentário. Eu avisei aos atores que eu tinha R$ 300 para dar por entrevista. Estive com Rubinho três vezes e dei R$ 1 mil. Aí ele sumiu por um tempo e voltou me cobrando mais R$ 1 mil, senão não autorizaria o uso de imagem. Quando conseguimos um patrocínio da Secretaria de Cultura para finalizar o filme, demos mais R$ 1 mil. Um filme que custaria R$ 600 mil, a gente fez com R$ 200 mil. Eu, como diretor e produtor, não ganhei nada. Tenho todos os documentos assinados aqui por ele com o nosso acordo — relata, acrescentando: — Rubinho é um cara muito inteligente, articulado, um super ator. Mas tem o problema do vício em drogas. De tempos em tempos ele reaparece dizendo que eu e Fernando Meirelles o exploramos. É triste, porque Fernando tentou, inclusive, pagar reabilitação, e ele fugiu da clínica.
Três anos depois do lançamento do documentário, o carioca virou notícia ao ser encontrado na cracolândia de São Paulo.
— Já usei drogas pelo Brasil inteiro, como qualquer morador de rua, mas consegui superar. Hoje, eu sou isso aqui, cigarro e cerveja — afirma, pedindo de forma polida: — Posso me servir mais um pouco?
Rubens diz que nunca trabalhou de verdade, muitas vezes por opção. Mas antes da pandemia estava disposto a mudar de vida além-mar. Depois de uma aposta com um “brother filantropo”, ganhou uma passagem para Portugal, tirou o passaporte e embarcou.
— Cheguei lá com R$ 480 no bolso, e me mandaram de volta. Todo mundo do meu avião foi aceito, só eu que não. Se estivesse lá, ia trabalhar de garçom, limpar privada, varrer chão, dar banho em cachorro… Ia me virar — vislumbra ele, que por aqui vive de rodoviária em rodoviária: — Eu ando por várias cidades do Rio, São Paulo, Minas, Sul do país. Vou pedindo esmola e que me paguem passagens. Às vezes, vou para lugares distantes, achando que ninguém vai me reconhecer. Eu não tenho casa, minha morada é o mundo. Ainda quero conhecer o Nordeste.
— Outro dia, eu estava vendo um outdoor com as fotos de várias personalidades. Um professor, um médico, um garçom… E estava escrito assim: “Esse é o meu jeito de revidar”. O meu jeito de revidar seria fazer um monólogo ou um curta-metragem com a obra de Michel Foucault (filósofo francês). Li e me encantei por “Microfísica do poder”. Todos os livros dele já são roteiros prontos, eu decorei alguns deles. Queria poder revidar tudo o que me aconteceu nessa vida com arte. Se um dia eu tiver essa força, eu vou fazer — afirma, antes de se despedir sem rumo certo.