Longevidade crescente de pessoas com Síndrome de Down impõe novos desafios
Aos 43 anos e com Síndrome de Down, a massoterapeuta Helga Almeida não apenas chegou à fase adulta — algo impensável há um século — como acredita estar no auge de sua vida. A síndrome, causada por uma modificação no cromossomo 21 do DNA humano e também chamada de trissomia, não a impediu de frequentar a escola e fazer atividades sozinha, como pegar ônibus, cozinhar e trabalhar com atendimento ao público. Hoje é ela quem planeja sua rotina de trabalho no Instituto Mano Down e no Banco Inter. Quando não está trabalhando, divide o tempo entre aulas de zumba, capoeira, yoga e natação. No fim de semana, o programa é ir à balada com amigos.
— Sempre acreditei em mim. Meus pais são médicos e me deixaram livre para que eu aprendesse a fazer as coisas de que gostava. Ando sozinha na rua, pego metrô, já trabalhei como secretária e em supermercado aos 20 anos e, quando descobri que amava fazer massagem, fiz um curso. Hoje atendo crianças, idosos e adultos com e sem Síndrome de Down — conta a mineira, natural de Belo Horizonte.
O Brasil tem cerca de 300 mil pessoas com Síndrome de Down , e a expectativa de vida desta população não para de crescer. De 35 anos, em 1991, pulou para 55, em 2000, e, agora, já está em 60. Experiências como a de Helga se multiplicam e trazem os desafios da “idade adulta”. A mudança de rotina com a saída de casa, o início e término de relações amorosas, a chegada dos filhos e dos boletos são parte desse novo momento. Mas uma preocupação se instala: e quando faltar a família?
— À medida que a ciência vai avançando e os cuidados vão sendo aprimorados, naturalmente as pessoas com Síndrome de Down experimentam um aumento de longevidade, exatamente como acontece com a sociedade em geral. Esses avanços, além de motivos de comemoração, trazem também a preocupação com as mudanças. O que antes era apenas a “possibilidade” de um filho com Down viver mais do que seus pais vira uma “probabilidade”. É aí que reside a angústia dos pais sobre quem cuidará dessa pessoa — afirma Etieneda Rosa, enfermeira doutora em gerontologia.
O desafio do adulto com Down tem levado à construção de novos arranjos familiares. De acordo com Rosa, os pais tendem a procurar por um parente próximo que possa assumir a responsabilidade de ser um apoio futuro para o filho na ausência deles. Na maioria das vezes, a missão cabe a um irmão, na esperança de que a ligação fraterna proporcione a mesma atenção, carinho e cuidados após o falecimento dos pais.
Nova fase
Rogério França, de 63 anos, teve uma vida muito independente e sempre trabalhou, mas passou a depender mais de ajuda por volta dos 45, quando os sinais do envelhecimento, marcados pela falta de memória e medo de sair à rua, começaram a aparecer. Com a morte da mãe, há cinco meses, Rogério conta hoje com o auxílio da irmã mais velha, Rosângela Franca, de 74 anos. Ela diz que, mais do que as preocupações com o futuro, seu foco atualmente é proporcionar ao irmão uma vida melhor e mais saudável no presente:
— Ele cumpre atividades fixas desde que era mais novo. Minha mãe faleceu aos 97 anos, lúcida, e sempre o auxiliou. Hoje somos eu e meu irmão ao lado dele.
A dissertação “Os idosos com Síndrome de Down e a exclusão social na velhice: um estudo de caso”, de Etieneda Rosa, mostra que os avanços na longevidade graças à ciência têm um outro lado que exige atenção. Há um risco de que essas pessoas tenham de lidar com um cenário de exclusão ao se aproximarem da velhice, se não forem bem compreendias.
“Retração, dificuldade de locomoção, depressão, introspecção, lapsos de memória, lentidão acentuada na realização de atividades rotineiras, manias e até demência” são alguns dos exemplos citados no estudo.
Na avaliação dela, isso acontece porque eles envelhecem numa faixa etária diferente e bem anterior à da sociedade em geral. Rosa afirma que muitas das transformações que são causadas pelo envelhecimento precoce acabam sendo interpretadas como eventos isolados e aleatórios
— Por exemplo, episódios de perda de memória causados por um início de Mal de Alzheimer, na faixa dos 30 anos, muitas vezes são confundidos com deficiências intelectuais advindas da própria síndrome, quando na verdade fazem parte de um processo de transformação de todo o organismo — diz a especialista.
A família de Izabel da Silva, de 68 anos, conta que nos últimos cinco anos, ela aparenta ter envelhecido mais rapidamente do que o observado em pessoas sem Síndrome de Down. Izabel já não tem mais tanta força física como antes e apresenta lapsos de memória. No entanto, a filha dela, Cristinna da Silva, ressalta que a mãe ainda cuida dos três netos quando ela precisa de apoio, faz comida, limpa a casa e ajuda o pai, que tem doença de Fahr — uma enfermidade neurodegenerativa rara.
— Eu aprendi o que era Síndrome de Down na escola e, na época, a expectativa de vida era de 36 anos. A minha mãe me gerou com essa idade. Vivia desesperada porque achava que ela fosse morrer a qualquer momento. Graças a Deus, ela está aqui com ótima saúde. O cuidado que temos é com os remédios que ela precisa tomar, comuns para a idade, e com as saídas à rua sozinha — afirma Silva, que ainda este ano lançará o livro “Minha mãe tem Down, e daí?” para contar a história de Izabel.
Autonomia é a meta
Coordenador do Projeto de Envelhecimento Saudável do Instituto Serendipidade, que oferece gratuitamente acompanhamento médico a pessoas com deficiência intelectual atendidas na ONG Apoie, em São Paulo, o geriatra Marcelo Altona alerta para a importância de cuidados diversificados durante o envelhecimento de pessoas com Down.
—É importante ter bons hábitos e um estilo de vida que inclua o controle de doenças crônicas, estímulos cognitivos e físicos, além de cuidados com sono e estresse. A socialização também é um fato importante. Tudo isso está no cerne da prevenção de problemas cognitivos, como o Alzheimer — observa Altona, que é médico do Hospital Albert Einstein.
Pesquisadores que trabalham com longevidade de pessoas com Síndrome de Down apontam que os cuidados, mais do que nunca, devem começar quando elas ainda são crianças. Pediatra e cardiologista especialista em Síndrome de Down da UFMG e do Instituto de Educação e Pesquisa em Saúde e Inclusão Social, Carolina Bragança Capuruço afirma que é importante orientar o crescimento delas com base nas características próprias de cada uma — algumas, por exemplo, têm mais problemas cardíacos e nenhuma ou quase nenhuma dificuldade cognitiva.
— Com a perspectiva de maior longevidade, potencializar ao máximo o que a criança pode ser quando adulta é ainda mais urgente. A ênfase deve ser criar autonomia — afirma ela, destacando a necessidade de maior foco em fisioterapia, terapia ocupacional e trabalho com psicopedagoga especializada.