CULTURA E EDUCAÇÃO

Baiana System e Olodum falam do primeiro show juntos: ‘Tambor é passado e futuro’, diz Russo Passapusso

Tem uma revolução artística acontecendo dentro de uma casa no Rio Vermelho. É no famoso bairro de Salvador que dois gigantes da cultura baiana estão se encontrado para pesquisar referências musicais, audiovisuais e literárias que vão desaguar num espetáculo inédito e há muito aguardado pelo público.

É difícil entender por que levou tanto tempo para essa dobradinha rolar, mas agora vai: Olodum e Baiana System tocarão juntos pela primeira vez. Será no Festival de Verão de Salvador, marcado para 28 e 29 de janeiro, véspera daquele que promete ser o carnaval da redenção na capital baiana após o hiato provocado pela pandemia de Covid.

E nada desse negócio de um fazer o show de abertura e o outro, a apresentação principal. A ideia é mostrar o resultado da simbiose entre as duas bandas. Tanto que os integrantes batizaram o projeto de Olodumbaiana. Assim mesmo, tudo junto, “misturado que nem Ki-Suko: botou na água, ninguém separa”, brinca Lucas di Fiori, representante da nova geração do Olodum.

Hits como “Lucro”, “Dia da caça” e “Duas cidades”, do Baiana, e “Várias queixas” e “Vem meu amor”, do Olodum, estão confirmados no repertório. Mas serão executados de um jeito que ninguém jamais ouviu, garantem os artistas, conduzidos pela junção dos tradicionais tambores do bloco com os explosivos beats eletrônicos do Baiana.

Mas, sobretudo, construídos a partir da convivência deles nesse laboratório de pensamento, onde também têm estreitado a amizade. Um sentimento que surgiu dessa experiência é o de responsabilidade. Uma certeza? A de que será um show repleto de mensagens. Afinal, para além da conexão entre a música que fazem e do fato de representarem a Bahia pelo mundo, as duas bandas têm em comum diversas bandeiras.

— Quando os ouvi pela primeira vez, percebi que falavam do mesmo que nós: da dignidade do artista, como também ouço em MV Bill e Racionais. Brigamos por direitos iguais, contra o racismo, a violência contra a mulher, a mulher negra, trabalho escravo de crianças — diz Lazinho, fundador do Olodum e autor de canções que lembram a chacina da Candelária e o índio Galdino, assassinado em Brasília há 25 anos.

Baiana System urgente

 

Quando o bloco foi fundado, em 1979 — com o intuito de fazer com que a comunidade do Pelourinho, que só segurava a corda e catava latas, também pudesse brincar o carnaval —, integrantes do Baiana System nem pensavam em nascer. A banda só surgiu em 2009. Desde então, os grupos dividem não só o mesmo tempo e espaço como a cidade, cujos moradores alimentam há uma década o sonho de vê-los juntos em cena. Se não fosse a pandemia, que jogou em nossa cara o sentido de urgência, esse encontro não teria acontecido, acredita Russo Passapusso, vocalista do Baiana.

—Sabe quando nada te impede e você vai deixando de ir à praia que é na frente da sua casa? Aí, quando rola de não poder mais ir, fala “meu Deus, preciso tomar um banho”… É isso — diz Russo. — A pandemia criou um vácuo, tirou a continuidade do comportamento programado, zerou tudo. E trouxe necessidades para serem executadas.

— Senti que na mistura do Baiana tinha samba-reggae. Tinha tecnologia, mas também o tambor. Máquinas ressoavam parte da coisa e um percussionista complementava. A magia acontecia junto com dubs, ragga, com a música da rua, com o soundsystem — observa Lucas. — Com o Olodum, fui a 28 países, vi vários tipos de música. E enxerguei o mundo no Baiana, sem perder a regionalidade. Porque a gente está falando dos tambores ancestrais, de guitarra baiana, do selo nordestino.

Misturar as linguagens visuais — as cores do pan-africanismo estampadas nos tambores do Olodum e o balé de seus músicos — com o show de Led do Baiana — também tinha tudo a ver, na opinião de Lucas. Ele, então, jogou aquela primeira semente da ideia na porta da rádio. Só que aí veio a pandemia…

Mas suas palavras permaneceram ecoando nas cabeças do guitarrista do Baiana, Beto Barreto, e de Russo. Até que em meados deste ano, o cantor foi convidado pela produção de um festival em Belo Horizonte para fazer uma participação no show do Olodum. Deu match. E o convite do Festival de Verão de Salvador veio para afirmar a iminência desse encontro.

— Tem alguma coisa acontecendo que transcende a nossa visão de querer fazer um projeto junto. Existia, sim, uma necessidade musical e artística da cidade que estava pipocando. Outras pessoas perceberam o que o mensageiro Lucas já tinha chegado para falar — filosofa Russo. — No mundo de hoje, é difícil acontecer coincidências porque todos sabemos onde estamos o tempo todo e o que vamos fazer. Então, acho que a gente está sendo olhado por alguma foça maior.

 

Juntar uma das bandas mais provocadoras da atualidade com um bloco que se mantém original e fiel às suas tradições é falar ao mesmo tempo de modernidade e ancestralidade, segundo o diretor musical Zé Ricardo, curador do Festival de Verão de Salvador.

— É uma conexão que fala sobre cor, ascensão social e outros temas importantes para a sociedade discutir. Esse show vai ser importante e impactante pela narrativa que constrói somando essas duas histórias — acredita Zé. — O Festival de Verão ser palco desse encontro pela primeira vez diz muito sobre a nossa proposta, que é a de conectar mundos. Olodum e Baiana têm mundos completamente diferentes que se conectam perfeitamente através da música.

Mundos diversos, mas com origem na mesma raiz. Se não fosse o legado do Olodum (e de tantos outros blocos afro), que chega a ser uma espécie de religião nas favelas de Salvador, dificilmente o Baiana System estaria fazendo soar o seu som cosmopolita por aí.

— O Baiana é filho do Olodum, do samba reggae, do manguebeat e de tudo que veio antes. A gente bebe de tudo isso. Não acreditamos em nada novo, somos continuidade. Não há nenhuma invenção que não seja atravessada por esses ecos dos tambores da Bahia que se chama Olodum — afirma Russo.

Beto vai além.

— O Ilê Aiyê é a matriz de onde saíram os blocos afro, que trocavam informações com regentes como Lascada, Neguinho do Samba, Prego, Mestre Jackson. Isso regeu tudo o que veio depois e ficou conhecido como axé — explica. — Quando a gente começou, diziam que estávamos trazendo um som novo. Mas não. Somos parte disso. Estávamos falando de guitarra baiana, de tambor e de usar isso no eletrônico, o que também já tinha sido feito por gente como Ramiro Mussotto (percussionista argentino radicado no Brasil, que morreu em 2009). Não havia nada sendo criado, tudo já tinha sido desenvolvido.

— É futurismo, pois se trata de resgate com ideia de futuro. O samba-reggae é futuro porque está vivo, pulsante, ecoando, sendo remixado em diversas linguagens, como sempre foi, e criando vários outros derivados. É o museu do futuro — define. — Sabe quando começo a cantar um frevo e você continua a letra? Isso não é nostalgia e, sim, futuro. Porque ainda está aqui. Várias músicas que dizem ser o futuro passam. Então, o que não passa é o futuro porque ainda estará lá na frente. É futuro o que você canta e transpassa o tempo e não o hit que passou.

Beto complementa dizendo que, “para começar, futuro tem que ter lastro”.

— Não se pode dizer que algo que começou agora é o futuro. Quando a gente diz que samba-reggae é futuro, afirmamos o passado junto, batemos na memória, algo que tem sido atacado em nosso país e que precisamos valorizar.

Lucas se emociona com a tese de Russo e Beto. Ele conta que em todas as entrevistas que concede precisa reafirmar que o Olodum está longe de ser apenas passado.

— Essa ideia vem da desvalorização do povo brasileiro e por causa da tal memória curta. Velho, a gente continua aqui.

Outro aspecto importante de ser reafirmado, na opinião de Russo, é o sentido de coletividade da música.

— Hoje, alguém dentro de um quarto está fazendo um beat eletrônico. Só que o próprio processo eletrônico também sempre falou de coletividade. Quando se colocava um beat, era para alguém soltar e outra pessoa responder tocando. O Baiana, mesmo sendo da linguagem eletrônica e dialogando com o orgânico, pega a essência da história, que é a coletividade que se desdobra em tantos músicos e histórias — afirma. — Continuamos o fundamento do Olodum, do samba-reggae, com perguntas e respostas, a participação do outro dentro disso. Porque o tempo vai passando, o que era tecnologia humana entra na parte eletrônica e sobrevive com o humano saindo de novo da eletrônica. É a gente que toca os botões. Por isso, não é a música eletrônica que é o futuro, é o tambor. O tambor que ressoa na máquina foi tocado por alguém.

— Tudo se esgota se usarmos apenas o computador, o celular. A inspiração e até o meio de produção vai se esgotando se não bebermos do nosso passado.

Resgate sonoro da ancestralidade e dos saberes eruditos

 

Sentar ao redor de uma mesa com integrantes do Olodum e do Baiana System é presenciar uma troca incessante de informações sobre história da música baiana, ancestralidade e legado. A gente fica sabendo, por exemplo que, até a criação oficial do samba-reggae, atribuída a Antônio Luís Alves de Souza, o Neguinho do Samba, as bandas de Salvador reproduziam ritmos do samba do Rio de Janeiro.

Foi ele também, vindo do Ilê Aiyê para depois fundar o Olodum e a Didá (primeira banda percussiva de mulheres no Brasil), o responsável por disseminar o costume de tocar repique com duas baquetas.

— Usávamos uma baqueta só e a mão, que acabava sangrando. Neguinho, que era ogã, sempre tocou com duas. Ele dizia: “O tempo da escravidão acabou”. Quando ele veio do Ilê para o Olodum, achou as baquetas pesadas e passou a usar talas de araçá. Depois, vime. Ele também tirou o apito, substituiu por gestos com a mão, linguagem corporal — conta Lazinho, do Olodum, que faz show na Fundição Progresso dia 19, na festa Awurê.

Outro que é reverenciado por ali é Dodô, que, junto com Osmar, criou a guitarra baiana e o trio elétrico.

— Ele era um preto engenheiro incrível. Não tinha cantor lá em cima se ele não tivesse criado a tecnologia do trio. Inventou algo no mesmo tempo da guitarra Gibson, só que patentearam lá. O botão eletrônico que a gente aperta hoje, ele criou lá atrás. Por isso coloco esse futurismo tecnológico de agora dentro desse ambiente como principal veia de criação — diz Russo Passapusso, do Baiana, que se apresenta em 1º de dezembro no Jockey Club do Rio.

— Não é algo primitivo, como costumam colocar para nós (pessoas pretas). Esporte, o corpo que dança, que toca, o cara que carrega… Sempre me dizem após o show: “Nossa, Russo, que catarse pesada”. Não é isso! A gente é engenheiro, é tecnológico, é pesquisador. Dessa história toda nasce a cultura do samba-reggae, imortal, que não vira a página. O senso artístico, a dor, a poesia e a sensibilidade são uma coisa. Agora, vai construir o aparelho para conseguir passar tudo isso ao mundo… Trata-se da junção de tudo isso o Olodumbaiana.

Vandal acredita que a união das duas bandas pode inspirar um novo “levante” na cidade.

— São bandas que se preocupam com toda a engrenagem e em como isso vai reverberar nas favelas daqui. Esse resgate será importante para fazer com que o povo, cheio de mazelas, se veja com um novo gás de estrutura musical, de vontade de pesquisa, para entender o que está sendo feito e se inspirar. Artistas, quando ganham certa notoriedade, tendem a apagar seu passado. O Baiana mostra que a busca é incansável. E o Olodum é pulsante, está mais vivo do que nunca.

Russo encerra fazendo um convite:

— Saiam de suas casas, dos computadores, dos telefones. Se encontrem na esquina, façam fusões, toquem seu tambor, mostre o cavaquinho para o outro. Esse é o sentido que temos que trazer de novo após a pandemia. Essa tecnologia toda está custando muito caro à saúde mental das pessoas.

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