Vício em celular: como saber se o aparelho está prejudicando a sua vida
“Privacidade é importante para mim. E eu não tenho nada a dizer sobre coisa alguma”, desconversou o ator Keanu Reeves sobre sua total ausência nas redes sociais, a despeito do culto à sua imagem que existe na internet. Para nós, os outros simples humanos, resta a romaria de observação da tela do telefone a cada poucos minutos, algum desconforto com a distância do aparelho e horas a fio jogadas na lata do lixo observando vídeos de gatinhos, lances repetidos de futebol, dancinhas, trocas de roupas e trechos reprisados de filmes, novelas e podcasts, disponíveis na rede.
A onipresença das telas permeia até consultas com psiquiatras e psicólogos, onde o uso do celular tem sido classificado pelos pacientes como fonte de discussões familiares a possíveis acidentes de trânsito — passando por quadros de apatia e desânimo generalizado. A vida no trabalho fica comprometida, o encontro com os amigos piora bastante. Para se ter uma ideia do tamanho da questão, nós brasileiros passamos em média 5,4 horas diárias no telefone, um valor 30% maior do que o praticado antes da pandemia, diz o estudo da plataforma App Annie. Colocando em outra forma: é como se assistíssemos ao imenso filme “Titanic” inteiro e ainda sobrasse um tempinho para ver, mais uma vez, o último episódio do seriado “Game of thrones” diariamente. E amanhã de novo, e de novo.
— As pessoas estão viciadas, vão se atrapalhando com o uso do aparelho. Não param nem para fazer refeições, não conseguem passar um tempo com os familiares, nem se divertir — diz o psiquiatra Arthur Guerra.
Para debelar o abuso do telefone, o especialista pede que os pacientes enviem as “capturas de tela” com o tempo que gastaram no dia anterior, em todas as manhãs. Assim, pode sugerir que o individuo vá, gradualmente, reduzindo a média.
— Há quem adote um celular secundário só pra me enganar. Aí pode usar o telefone sem eu saber. É grave isso aí — avalia.
Os médicos explicam que uma régua importante para medir a distância dos viciados em telas dos que “só” fazem um uso nocivo do equipamento é o sofrimento com a prática. Ou seja, não há uma média recomendável de tempo online, a medida está em quanto esse hábito causa tristeza e é incontrolável.
Luiz Gustavo Zoldan, chefe de saúde mental do Einstein, dá pistas mais certeiras.
— O bom uso do celular acontece quando há funções específicas. Por exemplo, conversar com alguém, entrar numa reunião. Mesmo que seja com a finalidade do lazer, é preciso que ocorra em tempo adequado e não consuma o espaço disponível para outras atividades — explica. — O mau uso ocorre quando o celular é ativado sem função, serve como distração, que não agrega nada, nem relaxamento. E quando esse mau uso vira dependência? Quando a gente começa a sentir falta dele fisicamente, com irritabilidade e estresse, além de consumir tempo para outras atividades.
O médico explica que a dependência do celular guarda semelhanças com outros vícios. Há, por exemplo, o uso compulsivo, a restrição de repertório (que acontece quando o limite de tempo sem uso é cada vez menor e a pessoa saca o telefone em qualquer lugar, mesmo que seja no cinema lotado) e a fissura, que é a sensação negativa pela ausência do item.
Mesmo que não tenha virado vício, o uso sem limites não é livre de complicadores. No fim de 2022, pesquisadores da Itália relacionaram o uso compulsivo do celular com o hábito de compras desenfreadas. A análise levou em conta jovens adultos e demonstrou dois aspectos determinantes: a vontade de controlar sensações negativas e o chamado estado de “flow” — quando a pessoa perde a noção de tempo ao estar envolvida em atividade prazerosa.
Outra pesquisa, de neurocientistas da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, mostrou impactos do uso de redes sociais no cérebro de adolescentes: os que costumam checar as redes sociais constantemente mostraram maior sensibilidade a “recompensas sociais”, o tal do “feedback”, do que o outro grupo que não olhava as redes.
Por que é tão irresistível?
A psiquiatra americana Anna Lembke, autora do livro “Nação dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar”, da editora Vestígio, explica que há razões psíquicas para o celular ser tão sedutor:
— Os smartphones funcionam como drogas para o nosso cérebro. Essas telas agem de maneira recompensadora.
Essas atividades costumam liberar descargas de dopamina, o neurotransmissor do prazer.
— Nosso cérebro se adapta a esse volume de dopamina e começa a buscar reequilíbrio, entrando num estado de déficit do neurotransmissor. Num mundo de escassez de “recompensas” (como em tempos mais remotos) não há perigo em receber dopamina e o cérebro recalibrar. Mas quando temos muito acesso às drogas e buscamos mais, entramos num ciclo sem fim — diz.
Nessa busca por estabilidade, o cérebro passa a demandar mais e mais consumo de dopamina para sentir prazer.
— A médio ou longo prazo, o like pode se tornar aditivo, pode ser reconhecido como um estimulo necessário à vida. Quando a pessoa não recebe esses likes, perde aquela dose de dopamina, começa a se sentir excluída, não validada — explica Luiz Gustavo Zoldan, do Einstein.
Um caminho de volta
Não se trata de demonizar o uso do aparelho. Mas, sim, de reconhecer que seu uso desenfreado é tentador, aditivo e nocivo — sobretudo àquela parte da população que tem alguma disposição ao vício. Estima-se que somente 10% dos usuários realmente tenha compulsão doentia pelo aparelho. A grande maioria apenas comete excessos.
A boa notícia é que existe um caminho de volta para o equilíbrio.
— Para quem não pode se abster totalmente das telas, indico a moderação. Porém, todos os dados mostram que teremos mais sucesso nesse controle após um período de abstinência. Recomendo ficar longe do celular por quatro semanas, mas isso é impossível para muitas pessoas. Que tal, então, um dia por semana totalmente longe de telas, sem tocar e sem acessar nada? — sugere Anna Lembke, cuja especialidade é justamente o tratamento de vícios.
O equilíbrio não está necessariamente na ausência total das redes, mas no uso que respeita outras atividades do dia e não causa mal-estar perceptível depois.
— Dizer que a sociedade está doente é algo que se repete desde o século 19, eu não penso assim. É mais benéfico que cada um se avalie e cuide de seus hábitos— afirma a neurocientista Claudia Feitosa-Santana, que é autora do livro “Eu controlo como me sinto”, da editora Planeta.