O calor é uma grave ameaça à saúde dos brasileiros, alertam especialistas
O brasileiro costuma achar que está acostumado ao calor. Só que o calor que ele imagina estar aclimatado é coisa do passado. O aumento da intensidade e da frequência de ondas de temperaturas extremas é uma realidade trazida pelas mudanças climáticas que chegou para ficar no Brasil, alertam especialistas. E elas adoecem e aumentam os índices de partos prematuros, suicídio, agressividade e criminalidade, revelam novos estudos. O calor extremo mata.
Ninguém está acostumado com o calor extremo — e nem isso é possível. Que o digam, por exemplo, habitantes do Rio de Janeiro, que arderam no último dia 4 de fevereiro a 58ºC, a maior sensação térmica já registrada na cidade.
Ou os gaúchos que têm enfrentado dias seguidos temperaturas superiores a 35ºC com baixa umidade do ar, combinação insalubre, que aumenta a perda de líquido, sobrecarrega o organismo e eleva o risco para saúde.
— O calor é uma grave ameaça à saúde. As pessoas precisam entender que ele mata. É uma ilusão temerária pensar “estou acostumado”. Isso é coisa de um tempo que já não existe mais. É hora de pensar em adaptação, novas políticas públicas e cuidados pessoais. Temos que respeitar o calor, evitar ao máximo e se cuidar. Não é mais preciso ir para o deserto para morrer de calor, um megabloco ou outra aglomeração em dias muito quentes pode ter o mesmo efeito — adverte Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), especialista no impacto do meio ambiente sobre a saúde.
— O calor elevado provoca mudanças fisiológicas graves. O metabolismo cerebral pode ser afetado — frisa Saldiva.
Estudos com idosos já mostraram que calor e poluição afetam a cognição e a capacidade de concentração, por exemplo. Em animais, se comprovou que caem os níveis do neurotransmissor serotonina e outros hormônios associados ao humor.
No caso da epilepsia, uma hipótese é que como o calor intensifica a conexão entre os hemisférios do cérebro, pode influenciar mecanismos associados às convulsões.
— No calor, dormimos pior e isso muda a arquitetura do sono, o que tem muitas repercussões na fisiologia. Há muitas formas de o calor nos afetar — explica Saldiva.
Todos correm risco. Mas são especialmente vulneráveis, além de idosos, crianças e pessoas com doenças preexistentes, aqueles que trabalham a céu aberto, os passam muitas horas em transporte público (lotado e mal refrigerado), que têm pouco acesso a serviços de emergência e a cuidados regulares de saúde.
Mesmo praias e cachoeiras não são portos seguros, quando o termômetro dispara.
— As pessoas pensam em proteger a pele, passam protetor solar. Só que o problema é muito maior. Ninguém deve se expor em dias extremos porque não existe protetor cardíaco, renal ou cerebral. O sol, em dias assim, é para ser evitado — adverte Saldiva.
Além de medidas de adaptação urbana, como arborização, mudanças na arquitetura de moradias e prédios de uso público, são necessárias políticas públicas e um sistema de alerta de calor, como os que existem para a chuva, afirmam Saldiva e Renata Libonati, professora de Departamento de Meteorologia e coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Um sistema de alerta não apenas para a população. O sistema de saúde precisa estar preparado, os profissionais de prontidão para um provável aumento da demanda por assistência médica. “Está vindo uma onda de calor: proteja-se”, deveria ser a mensagem.
Libonati é coordenadora do estudo “Mudanças climáticas e desigualdades no Brasil: aspectos sociais e demográficos das mortes relacionadas ao calor em áreas urbanas do país”. O estudo mostrou que por terem se tornado mais intensas, longas e frequentes, as ondas de calor foram responsáveis por mais de 48 mil mortes nas principais regiões metropolitanas do país, de 2000 a 2018.
Mulheres, negros, idosos e pessoas com menor nível de escolaridade são as mais afetadas, segundo a pesquisa. O estudo foi realizado por pesquisadores de UFRJ, Fiocruz, UnB e Universidade de Lisboa.
Os cientistas analisaram dados de estações do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e do SUS (taxas de mortalidade) nas 14 principais regiões metropolitanas do Brasil, entre 2000 e 2018. Eles investigaram o chamado excesso de mortalidade no período e sua correlação com o calor.
Em todas as 14 regiões, houve aumento significativo no número de mortes durante eventos de calor extremo, associado principalmente a doenças do aparelho circulatório, doenças respiratórias e câncer. Doenças da pele e do tecido subcutâneo, do sistema nervoso e do aparelho geniturinário e outras causas de morte, como transtornos mentais e comportamentais também foram registradas.