Filme de Martin Scorsese sobre massacre indígena recebe nove minutos de aplausos em Cannes
Aos 80 anos, Martin Scorsese ainda é capaz de causar sensação e encantar as massas. “Killers of the flower moon”, novo filme do veterano diretor americano, um dos títulos mais aguardados da seleção oficial do 76º Festival de Cannes, foi recebido por nove minutos de aplausos ao final de sua sessão de gala, na noite do último sábado. A plateia resistiu firme e acompanhou com risos e apupos as três horas e 26 minutos do épico que resgata do esquecimento um capítulo obscuro da História americana: o assassinato de indígenas da tribo Osage na Oklahoma dos anos 1920.
— O que me resta na minha idade, se não correr riscos? — brincou o autor de clássicos como “Taxi driver” (1976), ontem, no primeiro encontro com a imprensa depois da concorrida sessão, ao lado de parte do elenco, que inclui Leonardo DiCaprio e Robert De Niro.
Adaptação do livro de David Grann, publicado em 2017, “Killers of the flower moon” começa com cartelas ao estilo do cinema mudo, explicando como a nação Osage foi expulsa de suas terras e forçada a se estabelecer em uma região pouco atrativa do estado de Oklahoma. A situação muda radicalmente quando os indígenas descobrem petróleo em suas propriedades e se tornam a população per capita mais rica do país. Mas a condição da comunidade indígena é ilusória e dura pouco. Logo, homens brancos tentam tomar suas posses por meio de uma combinação de casamentos inter-raciais, envenenamento e assassinatos.
Trabalho de equipe
O livro de Grann, no Brasil publicado pela Companhia das Letras com o título “Assassinos da lua das flores”, se apoia nos registros do FBI, então recém-criado. Em sua versão, Scorsese devolve o protagonismo aos personagens da comunidade indígena, envolvidos em disputa por terras semelhantes aos antigos faroestes. Os vilões brancos lembram os tipos mafiosos dos filmes mais populares do diretor, como “Os bons companheiros” (1990) e “Casino” (1995).
— Nosso povo sofre (discriminação) até hoje. Mas posso dizer, em nome da nação Osage, que Scorsese e sua equipe restauraram nossa confiança — disse o indígena Standing Bear, líder dos Osage, que serviu como consultor do longa-metragem produzido pelo Apple TV+, que estreia no Brasil em 20 de outubro.
O contato com os líderes Osage, segundo Scorsese, foi fundamental no processo criativo.
— Percebi a importância desses encontros cada vez que os ouvia falar sobre valores culturais, amor e respeito pela terra. Não estou dizendo sobre a intenção de transformar esse tema em uma questão política, mas de entender o pensamento deles sobre como viver nesse planeta — explicou o diretor . — Queria saber tudo sobre os Osage, e Standing Bear me orientava. O impressionante é que quanto mais eu descobria sobre eles, mais queria colocar no filme.
Em sua sexta parceria com Scorsese, DiCaprio interpreta Ernest Burkhart, um veterano da Primeira Guerra Mundial que chega ao condado dos Osage para trabalhar para o tio, o rico e ambicioso fazendeiro William Hale (interpretado por De Niro), uma espécie de benfeitor da região. Ernest ganha a função de motorista e mensageiro dos indígenas ricos da cidade que, apesar do poder financeiro, precisam de um tutor branco para usufruir do dinheiro que ganham.
Uma da clientes de Ernest é Mollie Burkhart (a atriz Lily Gladstone), cujo clã é assombrado por doenças e mortes bizarras. Hale estimula o sobrinho a casar com Mollie, com a intenção de trazer a riqueza dos Burkhart para a família.
— O que Marty (Scorsese) faz incrivelmente bem é explorar a humanidade dos personagens, até mesmo daqueles mais distorcidos e sinistros, tipos que você jamais poderia imaginar — elogiou o ator, que trabalhou sob o comando do diretor em filmes como “O aviador” (2004) e “O lobo de Wall Street” (2013).
Menção a Trump
De Niro, por sua vez, admitiu sentir dificuldades para ter alguma compaixão por seu personagem.
— Não entendo muito bem que tipo de homem é William Hale. Por que ele traiu todos os indígenas? Uma parte dele é sincera, a outra, em que ele trai o povo Osage, se sente no direito de fazer o que faz. O racismo sistêmico é isso. É a banalidade do mal — comentou o ator, que sugeriu haver semelhanças entre William Hale e Donald Trump, sem mencionar, no entanto, o nome do ex-presidente americano. — Vemos isso hoje, é claro. Todos nós sabemos a quem me refiro, mas não vou dizer o nome. Aquele cara é estúpido. Imagine se fosse inteligente. Até Hale era inteligente, em muitos aspectos.
Lily Gladstone explicou que alguns membros da comunidade Osage ainda compareceram ao funeral de William Hale, como se tivessem tido dificuldade de reconhecer o envolvimento do fazendeiro nos assassinatos brutais de membros da tribo. A atriz foi um dos principais alvos dos aplausos da noite de gala de “Killers of the flower moon” e tentou conter as lágrimas enquanto a plateia do cinema batia palmas freneticamente.
— Eu me sinto grata. Ter todas as pessoas que estão representando este filme juntas de tantas maneiras diferentes parece muito justo — disse a atriz.
Scorsese, que ganhou a Palma de Ouro em 1976, por “Taxi Driver”, teve um sentimento inédito nesta edição do festival.
— Acho que nunca experimentei algo assim — disse o diretor, sobre a consagração do público. — Foi a coroação de anos de trabalho e de um calor extraordinário, que veio do coração.