SAÚDE

‘Pior que alcoolismo’: o impacto do autoplay na saúde mental de crianças e adultos

Atire a primeira pedra quem nunca ficou rolando o feed do Instagram por horas antes de dormir ou perdeu a noção do tempo nos intermináveis vídeos do Reels ou do TikTok. A verdade é que o objetivo dessas ferramentas é justamente esse: fazer com que os usuários fiquem cada vez mais tempo conectados.

“A Big Tech adotou o vício como modelo de negócios. Sua ‘inovação’ não é projetada para criar produtos melhores, mas para chamar a atenção usando truques psicológicos que tornam impossível desviar o olhar. É hora de esperar mais e melhor do Vale do Silício”, disse o senador republicano Josh Hawley, em uma publicação no Twitter em 2019, quando introduziu a proposta de lei Social Media Addiction Reduction Technology (Smart) Act que mira em técnicas e recursos criados para encorajar e aprofundar comportamentos viciantes nas redes sociais.

São eles: rolagem infinita ou recarga automática dos feeds das redes sociais; o autoplay ou reprodução automática de vídeos; distintivos e outros prêmios vinculados ao engajamento com a plataforma, como os emblemas do Snapstreak, que marcam quanto tempo amigos trocam mensagens diárias.

Esses recursos estão tão intrínsecos no nosso dia a dia que nem nos damos conta do quanto são prejudiciais. Mas a verdade é que vemos uma sociedade completamente viciada em vídeos que rodam automaticamente e timelines infinitas, quase impossíveis de fechar.

Há muitas décadas pesquisadores investigam o vício comportamental, aquele que não envolve o consumo de algum tipo de substância, e sua relação com a internet. Está cada vez mais claro que o uso de dispositivos digitais causa esse tipo de vício e isso pode ser fortemente impulsionado pelas redes sociais. Um estudo do Instituto Delete – Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), indicou que 7 em cada 10 pessoas apresentam uso abusivo de telas e 3 em cada 10 pessoas apresenta um uso abusivo patológico dependente.

— Já é algo maior que alcoolismo, por exemplo — ressalta Eduardo Guedes, pesquisador do Instituto Delete.

A dopamina é o principal químico envolvido na formação de vícios. Estudos mostram que as mídias sociais agem no cérebro de maneira semelhante ao álcool e às drogas, gerando uma descarga de hormônios do prazer, dopamina e endorfina, que não pode ser sustentado no médio prazo, o que estimula a pessoa a ficar conectada para obter essa sensação prazerosa.

— Em particular, as mídias sociais têm um mecanismo de recompensa e engajamento que levam a essa sensação de autossatisfação associada ao hormônio do prazer — avalia Guedes.

Nas redes sociais, quem decide qual publicação ou vídeo aparece na timeline de um usuário não é o indivíduo, mas um algoritmo de inteligência artificial que seleciona os conteúdos que podem ser mais interessantes e apelativos para o usuário. O professor de neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Li Li Min, pesquisador do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Cepid – Brainn), explica que, na maioria das vezes, são conteúdos com alto apelo emocional pois é isso o que prende o usuário na rede.

— Muitas vezes, a pessoa nem termina de ver o vídeo, por mais curto que ele seja. Ela já pula para o próximo porque ela não está atrás do conteúdo, mas de uma experiência prazerosa porque o conteúdo da imagem e do vídeo tem inúmeras informações que estimulam o usuário de alguma maneira para dar essa sensação de prazer.

Embora muitas vezes essa seja uma atividade “automática”, que fazemos de forma inconsciente, segundo especialistas, ela está longe de ser passiva.

— Mesmo que a pessoa esteja usando as redes sociais de maneira automatizada, esse conteúdo representa um bombardeio de informações ao cérebro, que reage a isso de forma contínua — explica Min.

E isso pode trazer consequências negativas para a saúde física, mental e cognitiva.

— Vemos uma correlação muito grande à hiperexposição de tela com transtornos primários de ansiedade e o autoplay é um recurso das redes sociais que gera essa hiperestimulação da atenção porque a pessoa fica conectada o tempo inteiro. Isso gera uma percepção alterada de tempo e, em especial se ocorrer a noite, pode gerar privação de sono. É o que chamamos de sonambulismo digital — alerta Guedes.

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