Essa discussão acontece porque há um segundo imunizante no radar que é produzido localmente e, portanto, privilegiado, o do Instituto Butantan. Análises iniciais indicaram uma eficácia de 79,6% da aplicação em dose única, semelhante aos 80,2% da Qdenga, porém a vacina ainda está na fase de testes. A expectativa é submeter o imunizante à Anvisa até o fim de 2024, com doses prontas para serem entregues em 2025.
— Se a do Butantan fosse para o primeiro semestre de 2024, eu concordaria que vale esperá-la. Mas se é algo que fique apenas para daqui a anos então o Ministério deve avaliar com a Takeda a capacidade de oferecer uma vacina para a população enquanto isso — opina a infectologista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Raquel Stucchi, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
O tempo maior que o imunizante do Butantan necessita é entre outros pontos para comprovar uma eficácia geral. Por enquanto, a proteção foi observada somente para dois dos quatro sorotipos da dengue, o 1 e o 2 – já que o 3 e o 4 não circularam no país durante o tempo do estudo. Já a vacina da Takeda tem eficácia para todos.
— É super louvável termos uma produção nacional para garantir a sustentabilidade do programa, mas essa vacina não vai ficar pronta tão cedo. Então não vale a pena submeter a população a dois anos sem a proteção enquanto isso. O impacto da doença hoje é importante, temos mais de um milhão de casos em apenas um semestre, com centenas de mortes. E oferecê-la apenas nas clínicas reforça a desigualdade da doença — avalia Flávia Bravo, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Após o pedido para incorporação da Qdenga ser submetido à Conitec, o prazo inicial é de 180 dias, mas ele pode ser estendido conforme a exigência de mais documentos pela comissão. Ainda assim, será menor que a previsão para a aprovação da dose nacional.
— O Butantan ainda está um pouco distante disso, então aguardá-lo não é adequado. Mas a incorporação depende dessa avaliação criteriosa da Conitec. Se o Ministério sinalizar que é uma prioridade, ela pode ser acelerada, o que é importante e acredito ser do interesse da pasta. Porque em dezembro começa novamente a temporada de dengue, e se a análise técnica não for realizada, vai haver muita pressão quando os casos subirem e podem ocorrer decisões políticas — diz o infectologista e pesquisador da Fiocruz, Julio Croda.
Em nota técnica conjunta publicada nesta semana, as sociedades brasileiras de Imunizações, de Infectologia e de Medicina Tropical – da qual Croda é presidente – recomendaram a Qdenga para aqueles que podem recorrer à rede privada e destacaram que “não menos importante será a análise para incorporação desta vacina pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI)”.
Porém, ainda que seja incorporada no decorrer de 2023, garantir doses para a próxima temporada de dengue será um desafio, explica o secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Daniel Soranz. A pasta se reuniu nesta semana com a Takeda e planeja conduzir estudos de eficácia do imunizante na capital fluminense, como realizados com a Covid-19 durante a pandemia.
— Eles têm uma limitação produtiva, não tem capacidade de entregar uma quantidade grande antes dos próximos cinco meses, então qualquer pedido não atenderia para o próximo verão — conta Soranz.
Além disso, estados que têm alta incidência de dengue, como São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Goiás destacaram não ter planos de adquirir o imunizante de forma independente, e que seguirão o Ministério.
Produto nacional pode ser priorizado quando aprovado
Os especialistas apontam que a dose da Takeda pode funcionar como uma alternativa provisória caso a vacina do Butantan de fato se confirme eficaz e receba um sinal verde da Anvisa.
— A produção nacional é muito importante para termos segurança e acesso. Vivemos isso com a pandemia, de termos dificuldades para conseguirmos produtos de fora. Isso aconteceu com equipamentos, com vacinas. Então produzi-la aqui evita esse tipo de situação — explica Maierovitch.
Além disso, espera-se que a produção local faça com que a dose brasileira seja mais barata que a do Japão, comercializada hoje pela farmacêuticas para as clínicas privadas com um um preço máximo que varia entre R$ 224,58 e R$ 298,21, de acordo com a alíquota do ICMS de cada estado.
— A da Takeda também é aplicada em duas doses, o que aumenta o custo de aquisição e torna a adesão mais difícil. E nós já temos dificuldades em ampliar as coberturas vacinais. Então termos a produção nacional de uma vacina tão eficaz quanto e que é em dose única traz vantagens para o Brasil — cita Stucchi.
Ainda assim, Croda lembra que podem ser cogitadas soluções para os valores do imunizante japonês, como uma redução no preço devido ao alto quantitativo negociado pelo país ou um acordo para produzir as doses na Fiocruz. Ele cita que o Brasil é um grande mercado para o laboratório, já que é um dos com mais incidência de dengue do mundo.
Uma vacina nacional ou um possível acordo para produção local também seria importante porque, mesmo que a expectativa não seja oferecer a vacina para toda a população, algo a ser considerado é a capacidade da Takeda em disponibilizar o necessário para o público-alvo brasileiro.
— É preciso um quantitativo de vacinas suficiente, o que a depender das faixas etárias e das regiões estamos falando de muitos milhões de pessoas. E precisa garantir não só o suprimento inicial, mas a sustentabilidade ao longo do tempo no PNI. Não podemos introduzir uma vacina que pode faltar — diz Flávia Bravo.
A preocupação dos especialistas com a disponibilidade da vacina é devido ao cenário de alta da dengue. Maierovitch lembra que a doença bateu o recorde de mortes em 2022, tem ultrapassado cada vez mais vezes o número de um milhão de infectados ao ano e chegou a estados do país que nunca tiveram casos. A realidade é distante daquela da Covid-19, que apenas em 2021 matou mais de 423 mil brasileiros, enquanto a dengue no pior ano deixou mil vítimas. Mas acende o alerta.
— Isso tem uma relação íntima com as mudanças climáticas. Há alguns anos tínhamos estados no Sul sem dengue. Municípios com maiores altitudes sem a doença. Hoje temos no país inteiro. Tivemos epidemias em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, o que seria estranho anos atrás. É uma tendência que deve continuar, o que é preocupante — afirma o vice-presidente da Abrasco.