Polícia investiga tortura de funcionários negros em loja na BA
A Polícia Civil da Bahia abriu inquérito para investigar denúncia de tortura, grava em vídeo, de dois funcionários negros de uma loja em Salvador (BA).
Os dois jovens teriam sido torturados em momentos diferentes por terem supostamente furtado o estabelecimento —R$ 30, no caso de um, e mercadorias, no caso do outro. Um deles teria sofrido queimaduras nas mãos provocadas por um ferro de passar roupa, enquanto a outra vítima teria recebido pauladas.
O caso mais recente teria corrido em 23 de agosto, mas veio à tona na sexta-feira (26), quando os vídeos registrados pelos supostos torturadores viralizaram na internet. Neste mesmo dia, a primeira das duas vítimas registrou o caso na polícia, que analisa as imagens.
As duas cenas, segundo as vítimas, foram filmadas pelo empresário Alexandre Santos Carvalho, um dos donos da loja Atacadão das Máscaras, que também divulgou os vídeos na internet. Junto com ele, estaria Diógenes Carvalho Souza, primo do empresário e gerente do estabelecimento.
Questionada, a Polícia Civil não informou o nome do advogado dos dois suspeitos. A reportagem tentou contato por telefone e por WhastApp com Carvalho, sem sucesso. Souza não foi localizado.
Carvalho prestou depoimento na polícia. “Ele disse que queria fazer Justiça com as próprias mãos porque ficou muito chateado [com o suposto furto]”, disse o delegado Willian Achan, responsável pela investigação.
Além dele, já prestaram depoimento as vítimas e duas testemunhas. Souza deverá se apresentar na delegacia nesta quarta-feira (31).
Em um dos vídeos, o funcionário William de Jesus, 24, aparece seminu, com um pano na boca para abafar os gritos de dor, quando é ordenado a exibir o artigo 171 do Código Penal —em referência ao crime de estelionato— gravado nas mãos, a ferro quente, pelos agressores.
“Bota o 171 aí, ladrão”, ordena a voz, enquanto o jovem se contorce de dor na cadeira onde estava sentado.
Jesus afirma que, antes da tortura, vinha sofrendo diversas violações trabalhistas, como trabalhar sem carteira assinada, sem jornada fixa, sem descanso após o almoço e com descontos nos pagamentos por causa das desconfianças de furtos.
“Eles [os empregadores] acusavam todos os funcionários de furto. Então, eles descontavam no pagamento semanal da gente”, afirma o jovem. “Alguns não aguentavam e saíam. Eu fiquei porque precisava do dinheiro. Era como um trabalho escravo.”
No dia em que foi torturado, diz ele, chegou para trabalhar normalmente, quando foi surpreendido pelos agressores. O funcionário conta que a porta da loja foi fechada e, em seguida, sofreu espancamentos e teve as mãos queimadas.
“Eu não roubei nada”, afirma. “Eles disseram que eu ia sofrer como no tempo da escravidão. Tive medo de morrer, mas consegui fugir.”
A suposta vítima mais recente dos empregadores foi Marcos Eduardo, 21, que procurou a polícia no mesmo dia das agressões —na terça-feira (23). Ele teria sido acusado pelos comerciantes de ter furtado R$ 30 do caixa do estabelecimento.
Durante a tortura, o vídeo mostra Souza dando pauladas nas mãos de Eduardo, que é obrigado a contar as agressões, narradas por Carvalho. Na gravação, Carvalho diz que colocou R$ 30 debaixo do balcão para testar a honestidade do funcionário
“Ó pessoal, mais um ladrão aqui. Trabalhou para mim aqui, a gente deu moral, deu confiança. Aí ele metendo mão no dinheiro. Botei uma isca para ele. Falei com meu primo aqui, que eu ia pegar ele […] Agora, ele tá colhendo o que ele plantou”, diz o homem no vídeo.
Segundo o delegado, Souza e Carvalho serão investigados por crime de tortura, além de exercício arbritário das próprias funções por terem confiscado celular e relógio de uma das vítimas. Pela Lei 9.455/97, o crime de tortura é inafiançável, com pena de prisão de dois a oito anos.
De acordo com o advogado Tiago Martins, que defende as vítimas, além de pedir a responsabilização penal dos empregadores por crime de tortura, a defesa também acionará a dupla judicialmente na esfera trabalhista.
“Além do dano psicológico, há também o dano trabalhista, pois eles não estão conseguindo trabalho”, diz. “No caso de William, é mais complicado ainda, pois é preciso esperar as queimaduras cicatrizarem, já que ele trabalha com atendimento ao público.”
Em nota, a Polícia Civil disse que os vídeos estão sob análise, mas que “as imagens são nítidas e servem como prova de crime”.
O Ministério Público do Trabalho abriu um inquérito, nesta segunda-feira (29), para apurar a denúncia de tortura. O órgão informou que um procurador deverá ser designado para o caso no decorrer da semana.