Crise na pesquisa de antibióticos pode prejudicar combate a superbactérias; entenda
Infectologistas encerraram ontem a Semana Mundial de Conscientização do Uso de Antimicrobianos, onde se discutiu como evitar que bactérias desenvolvam resistência a essas drogas. A ciência sabe bem o que fazer para prolongar a vida útil dos antibióticos que já existem, mas o desenvolvimento de novos produtos parece estar ficando mais difícil.
Os programas contra resistência antibacteriana se baseiam no princípio de evitar o uso das drogas mais novas para combater infecções que ainda possam ser tratadas com aquelas mais antigas. Isso faz com que, por um lado, a resistência a antimicrobianos avance mais devagar. Em contrapartida, as drogas perdem o potencial de lucro (e de investimento) por parte das empresas.
O quebra-cabeça data de pelo menos 2004, quando a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas publicou um relatório intitulado, não por acaso, “Bad bugs, no drugs” (“Bichos ruins, drogas em falta”, em tradução livre).
Quase duas décadas depois, a profecia do documento se materializou. O avanço da resistência a antibióticos e a falta de medicações eficazes provoca hoje cerca de 5 milhões de mortes no mundo ao ano, segundo o consórcio internacional Antimicrobial Resistance Collaborators.
Situação pós-Covid
Há ainda o agravante de que o número, de 2019, se refere a um cenário anterior à pandemia de Covid-19. Depois disso a situação piorou. A superlotação que o vírus causou em hospitais e o aumento da prescrição precipitada de antibióticos fez com que as bactérias super-resistentes se disseminassem ainda mais.
— Do meio para o fim de 2022 a tendência foi a de volta ao normal, mas no Brasil, infelizmente, o normal já não era uma situação boa, comparada à de hospitais americanos e europeus — alerta o infectologista Alexandre Zavascki, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
A entrada de novos antibióticos para tratar bactérias multirresistentes é uma necessidade que já se sente no Brasil, entretanto há poucas opções em vista.
— Das drogas da última geração, a única que chegou aqui foi a da Pfizer, uma das poucas farmacêuticas multinacionais que ainda investem em desenvolvimento de antimicrobianos — diz.
Coquetel de moléculas
Vendido sob o nome de Torgena, esse medicamento tem sido usado para tratar variantes resistentes da bactéria Klebsiella pneumoniae, mas não é uma droga propriamente “nova”, e sim uma combinação de uma molécula responsável pela neutralização de enzimas de defesa das bactérias com outra que efetivamente ataca o micróbio. Em outras palavras, um dos compostos desabilita o “escudo” de proteção química da bactéria, e o outro entra para efetivamente matá-la.
Outros dois medicamentos com combinação similar (o Vabomere e o Recarbrio) foram desenvolvidos por empresas menores. Um quarto, o Cefiderocol, foi criado pela japonesa Shionogi, com um modo de ação mais tradicional. As empresas que detêm os direitos de comercialização, porém, ainda não enxergaram potencial de renda no mercado brasileiro e não pediram registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
É comum que empresas inovadoras e pequenas sejam justamente aquelas que iniciam o processo de criação de novas drogas, mas, na visão de especialistas, o cenário está se tornando hostil. Um recente exemplo é a falência da empresa de biotecnologia Achaogen, que desenvolveu o antibiótico plazomicina, droga aprovada em 2018 pela FDA, agência de regulação de fármacos nos EUA, equivalente à Anvisa brasileira. Como as vendas não estavam em vias de compensar o custo de investimento, a empresa quebrou.
— Os antimicrobianos podem chegar a ser vítimas do próprio sucesso, porque são medicamentos de uso em curto prazo, em tratamentos de três a sete dias. Então, do ponto de vista financeiro, podem não ser mesmo atrativos — afirma Rafael Valdez, diretor médico da divisão hospitalar da Pfizer na América Latina.
Fuga de gigantes
O médico tratou do tema esta semana em seminário para promover o uso racional de antibióticos. Limitar prescrições poderia ser contrário aos interesses da empresa, mas se o uso desenfreado de uma droga cria bactérias resistentes a ela, a receita com o produto também pode se afetada.
A Pfizer vem aparecendo com mais frequência que outras concorrentes na cena. A empresa comprou uma divisão de antibióticos da AstraZeneca em 2016 e continua investindo no desenvolvimento dessas drogas contra a maré do mercado. Segundo levantamento da revista Wired, as concorrentes Eli Lilly, Wyeth, Novartis e Bristol Myers recuaram. Se a Pfizer se consolidar mesmo como a única gigante no mercado de antibióticos, sua massa crítica pode lhe dar vantagem sobre empresas pequenas.
— Em parte pela resistência das bactérias, o desenvolvimento de um novo antimicrobiano é muito lento e custoso, podendo levar de 15 a 20 anos, e o retorno do investimento pode não ser tão rápido — diz Valdez.
Apesar dos percalços no setor, a debandada de investimentos que vem ocorrendo há alguns anos não era algo totalmente imprevisto, pois na última década a Organização Mundial de Saúde (OMS) e governos de países desenvolvidos tentaram resolver o problema criando mais incentivos comerciais.
Nas contas de Valdez, pelo menos 18 novas moléculas nasceram dessa iniciativa, mas as empresas têm limitações para promover vendas, justamente para evitar que bactérias desenvolvam maior resistência a elas.
Para compensar esse desequilíbrio, alguns países estão estudando modelos de compra “por assinatura”, em esquemas de pagamentos fixos a empresas em troca de pronto acesso às drogas dentro de um certo limite. Isso, em tese, eliminaria o incentivo à prescrição exagerada.
Remédios por assinatura
O Reino Unido começou a testar esse modelo, mas a iniciativa já recebeu críticas pois algumas drogas incluídas no rol do programa não são moléculas totalmente novas, mas versões modificadas de drogas já conhecidas. Um grupo de infectologistas britânicos defendeu na revista The Lancet que esse modelo deveria se restringir a fármacos que representem um risco real de investimento por parte das empresas.
Os EUA estão discutindo um modelo similar numa proposta batizada de Lei Pasteur. Se aprovado , o programa teria aporte inicial de US$ 6 bilhões para bancar o acesso a novas drogas.
A América Latina, de modo geral, não tem a massa crítica financeira necessária para entrar na pesquisa de novas moléculas, e a discussão em pauta é mais sobre racionalizar o uso.
— A indústria farmacêutica sempre vai buscar lucro, mas há maneiras responsáveis e irresponsáveis de fazer isso. Existe histórico de abuso de algumas empresas, mas não todas. Algumas cometeram erros e estão tentando repará-los, outras estão se submetendo a novas regulações — diz o infectologista Alejandro Macías, professor da Universidade de Guanajuato , no México.
O acadêmico lembra ainda que governos e universidades não têm a mesma capacidade instalada de pesquisa que a indústria farmacêutica, essencial para a criação de novos antibióticos.