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Estado do Rio registra mais de cem feminicídios em 2022, o maior número em seis anos

Em janeiro do ano passado, uma vendedora de 33 anos foi morta simplesmente por ser mulher. Ela foi amarrada, torturada e carbonizada dentro do porta-malas de um carro, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, pelo ex-companheiro. Ele, o motorista Ivo Batista Gaudêncio, de 37 anos, com quem a vítima viveu um relacionamento de 13 anos, está preso sob a acusação de feminicídio. Com requintes de crueldade, o assassinato se somou a outros na estatística desse tipo de crime, que teve no ano passado o número mais alto desde 2016 no Estado do Rio: foram pelo menos 101 vítimas. Em 2022, a Justiça também concedeu 28.908 medidas protetivas a mulheres que sofreram ameaças ou agressões — ou seja, uma a cada 20 minutos.

 

Um dos quatro filhos da vendedora, um estudante de 14 anos, lembra os últimos momentos da mãe e não se conforma:

— Ele batia na gente com frequência. A gente falava para minha mãe se separar, porque ele poderia matá-la em algum momento. Eu fico triste por ver meus irmãos sofrendo. Esse foi nosso primeiro Natal sem ela. Não tem como esquecer como ela morreu. Infelizmente, a gente vai aprendendo a conviver com isso. No dia em que minha mãe foi assassinada, ele pediu para a gente pegar a marreta e o galão com gasolina no quintal, dizendo que seria para consertar o carro. A gente deu. Fico pensando que, se tivéssemos desconfiado, talvez ela estivesse aqui, viva — emociona-se o adolescente.

A Lei 13.104, que tornou o feminicídio crime hediondo, entrou em vigor em 9 de março de 2015. Com a nova legislação, o assassinato que envolve violência doméstica ou discriminação à condição de mulher passou a ter pena de 12 a 30 anos de prisão. No homicídio simples, a pena vai de seis a 20 anos.

Mas o rigor não tem inibido os autores de crimes cada vez mais brutais. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de feminicídios no Estado do Rio subiu 506,25% entre 2016 e 2022 no Estado do Rio, mesmo sem os casos de dezembro passado computados. De janeiro a novembro, foram 97 mulheres mortas. Pelo menos quatro casos foram registrados pela polícia no mês passado. Na contramão, o número de homicídios em geral vem caindo ano a ano.

 

 

Violência psicológica

Para combater crimes dessa natureza e ainda aumentar o acolhimento a vítimas de violência, o governador Cláudio Castro criou a Secretaria estadual da Mulher, com o objetivo de estabelecer um “trabalho transversal entre outras pastas do governo”, incluindo as secretarias de Polícia Civil e Polícia Militar.

— Um dos eixos do enfrentamento à violência contra a mulher com o qual a secretaria vai trabalhar é a presença forte do estado nos municípios. Vamos desenvolver campanhas de conscientização e criar núcleos especializados para capacitar as secretarias de Assistência Social de cada cidade, de forma que as mulheres sejam protegidas e acolhidas em todo o estado do Rio — explicou a advogada Heloísa Aguiar, titular da nova pasta.

Um levantamento do Tribunal de Justiça do Rio mostra que atualmente há 117.650 processos de violência doméstica em andamento. Entre os crimes mais cometidos está a ameaça, com 3.343 ações. Em seguida, vem a lesão corporal, com 941 ações, e depois, a injúria — forma de violência moral — , com 510 processos. Os dados mostram ainda que, de janeiro a outubro do ano passado, foram recebidas 45.053 novas ações nesse segmento.

— Atuamos em duas frentes: a punitiva, mais comum, e a educativa, que visa justamente a conscientizar a sociedade a fim de coibir a invasão do direito do outro, atingindo a segurança emocional ou física das mulheres. Além dos diversos mecanismos criados, como aplicativos e programas de reinserção dessas vítimas no mercado de trabalho, para conseguirem a independência financeira frente aos seus agressores, com base na lei, atuamos efetivamente para a proteção delas, como por meio das medidas protetivas — afirma o desembargador Henrique Figueira, presidente do TJ-RJ.

A vendedora morta em Nova Iguaçu tinha uma medida protetiva ao ser sequestrada em casa e morta pelo ex-companheiro, cujo processo tramita em fase de instrução e julgamento, sem prazo para o desfecho.

— Meu padrasto destruiu a nossa vida. Meus dois irmãos mais novos ficaram sem pai e mãe. A gente preza pela Justiça. A gente não tem muitas palavras para descrever o que aconteceu. Só temos sentimentos de dor e perda — lamenta a estudante de 16 anos, filha mais velha da vítima, que, pela primeira vez, passou com os três irmãos Natal e Ano Novo sem a mãe, na casa de parentes.

Angústia semelhante vive a família de uma esteticista de 38 anos, encontrada esquartejada em Bonsucesso, na Zona Norte do Rio, há um mês. Desde então, o namorado dela, Mário Raposo Yang, suspeito do crime, é considerado foragido.

— Esperamos pela Justiça com muito medo. Até agora, esse monstro está solto e pode fazer mais vítimas — desespera-se a madrinha da mulher.

Medidas protetivas

À frente do III Tribunal do Júri, a promotora Carmen Carvalho observa que a atuação dos agressores costuma ter início com violência moral e psicológica, podendo chegar a ameaças e agressões até culminar em feminicídio. Ela ressalta que muitas mortes são premeditadas, ocorrendo com meios cruéis e até na frente de filhos.

— Deveria haver, por parte do poder público, um mecanismo eficaz na punição ao desrespeito às medidas protetivas. Ou seja, prender o agressor ou assassino não é suficiente, porque daqui a dois ou três dias ele vai estar solto e pode voltar a descumprir a lei. Diferentemente dos traficantes, os autores de feminicídio, em sua maioria, não andam armados — critica a promotora.

Para a advogada e pesquisadora Marilha Boldht, são necessárias políticas mais abrangentes para proteger e acolher as vítimas. Presidente do Grupo Mulheres do Brasil, criado em 2013, ela conta que o movimento oferece atendimento jurídico e psicológico para mais de duas mil pessoas no Rio.

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— O estado precisa trabalhar na prevenção e com políticas assistenciais. Temos iniciativas pontuais, não temos uma assistência efetiva para que as vítimas consigam romper o ciclo de violência. Elas buscam as ONGs porque ainda desacreditam do estado. O nosso papel é incentivar essas mulheres para que elas possam cobrar e utilizar os serviços já disponíveis — explica a advogada.

O governo do estado informou que, em 2022, foram investidos mais de R$ 20 milhões em projetos de combate e prevenção à violência contra a mulher desenvolvidos pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, incluindo os Centros Integrados de Atendimento à Mulher (Ciams) e os Centros Especiais de Atendimento à Mulher (Ceams). “Os dois visam a promover a ruptura da situação de violência e a construção da cidadania por meio de ações globais e de atendimento interdisciplinar, que inclui assistências psicológica, social e jurídica, além de orientação e informação à mulher em situação de violência”.

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