O desafio é grande para uma das maiores metrópoles da América Latina, que tem um déficit de moradia, sobretudo para baixa renda, tão gigante quanto suas dimensões. E uma população em situação de rua que se alastra e, nos últimos anos, passou a viver em barracas itinerantes, que agora só têm autorização para serem montadas à noite. Uma vida de nômade com vulnerabilidades que se sobrepõem, fome, desemprego, insegurança. Paralelamente, crescem as invasões e os improvisos em prédios abandonados. Às vezes, a opção pelo risco é a única saída para não acabar na rua.
— Moradia é quase tudo. Só fica atrás de saúde, que tenho, graças a Deus. Mas espero logo ter minha casa também — diz Fabiana de Jesus, de 34 anos.
Desde o fim de 2021, ela mora com o marido e três filhos na Ocupação Penha Pietras, a poucos metros da Avenida Paulista, no coração do Centro de São Paulo. Chegou com outras pessoas no primeiro dia em que o Hotel Paulista foi ocupado, no rastro da falência acelerada pela pandemia. A família tinha sido despejada do imóvel onde vivia.
Desde então, Fabiana sonha com o dia em que o Movimento por Moradia e Inclusão Social (MMIS), ligado à Frente de Luta por Moradia (FLM), vai “ganhar o prédio”:
— Tenho teto e trabalho. Crio meus filhos longe da rua e tenho qualidade de vida, porque meu dinheiro não vai todo para pagar um aluguel. Mas meu sonho é que a Penha seja nossa por direito.
Hoje, 65 famílias moram no edifício de 11 andares com pinturas, biblioteca e um espaço cultural para as crianças, mas que ainda penam para restabelecer necessidades básicas, como tubulação de água. No térreo, onde funciona uma cozinha comunitária, as paredes exibem cartazes com frases como “Ocupar não é crime” e “Sem moradia, não há justiça”.
— Há empreendimentos inaugurando por perto, e sabemos que isso aumenta a pressão por uma reintegração de posse. Há gente que não nos quer aqui — diz Giulia Ramilo, de 24 anos, moradora e uma das colaboradoras do movimento na Penha Pietras. — Por isso fazemos tantas ações, que dão função social ao prédio. Moradia é direito.
Giulia e a mãe se juntaram aos outros depois de uma vida de “corre” para pagar aluguel, morando em pensão ou de favor na casa de parentes.
— Não faz sentido ter de escolher entre pagar aluguel e comer — defende. — Quero mostrar que estou aqui, sou trabalhadora de baixa renda e estou pronta para pagar pela minha própria moradia, mas não há políticas habitacionais para isso. Quando ocupamos, queremos dizer: “Olha quantos prédios vazios, e tanta gente precisando de casa”.
A proximidade das eleições (SP voltará às urnas para para eleger o novo prefeito no ano que vem) pode ajudar, reconhece:
— Há alguns empreendimentos saindo, e famílias sendo contempladas.
A referência é o Edifício Prestes Maia, no Centro, uma das maiores ocupações do país, com seus 22 andares e 470 famílias que viviam nos espaços improvisados da antiga fábrica de tecidos que existiu ali nos anos 1950. Há poucos meses, começaram as obras de requalificação do espaço, que vai virar um condomínio para população de baixa renda, com 287 unidades. A ação faz parte do novo programa “Pode Entrar” da prefeitura.
O projeto constrói empreendimentos de interesse social, requalifica os imóveis em parceria com movimentos sociais voltados para moradia e até compra unidades direto da iniciativa privada. Para serem beneficiadas, as famílias devem ter renda de até três salários mínimos e o comprometimento da renda não pode ultrapassar 15% do valor da prestação do imóvel. Outra exigência é que nunca tenham sido beneficiadas antes com uma unidade habitacional.
No Prestes Maia, o município entrou com os recursos, enquanto o licenciamento e o projeto ficaram a cargo de uma entidade parceira, indicada pelo Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), responsável pela ocupação. A previsão de entrega das unidades é meados de 2024. Há outros edifícios ocupados no Centro, como Mauá e José Bonifácio, em vias de receberem requalificação. O diálogo com movimentos de moradia, diz o secretário municipal da Habitação, João Farias, visa ainda diminuir o número de novas ocupações. As ações de despejo, entretanto, não cessaram.
— A meta era entregar 49 mil unidades habitacionais até o fim da gestão, hoje trabalhamos com quase 60 mil. Se tivermos incentivo do governo do estado e do governo federal, com a retomada do Minha Casa Minha vida (anunciada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva), podemos aumentar a oferta — diz o secretário.
A expectativa é zerar a fila de beneficiários de auxílio-aluguel até o ano que vem. Eles são a face de outra frente do problema. Removidas de comunidades ou de casas precárias, cerca de 19 mil pessoas, atualmente, recebem um benefício de R$ 500, que deve ser pago pelo caixa do município até que elas sejam contempladas por moradia.
É pressão sobre o orçamento mas também sobre a rotina de gente que escapou de situações dramáticas. A população removida da favela do Coliseu, na Vila Olímpia, que existiu desde os anos 1960 entre os prédios espelhados de um dos metros quadrados mais caros da capital, foi removida em 2019, numa operação policial cercada de polêmica. No lugar onde ficava a comunidade, um edifício de mesmo nome vai virar “lar” de quem foi retirado dali. A primeira parte da obra, 109 unidades, deve ser entregue até o fim de março. Outras 163 unidades, em setembro.
Há empreendimentos em outras partes da cidade, com a mesma finalidade, mas muitos caminham com lentidão. O próprio Prestes Maia entrou em obras há cerca de 20 anos, depois da primeira ocupação. O primeiro plano de reforma data de 2007. Sem sinal das britadeiras, as famílias, que haviam deixado o local, voltaram em 2010. A requalificação para habitação social ficou a cargo do governo federal, mas o plano desidratou, à época, com o fim do Minha Casa Minha Vida. Em 2021, a prefeitura transferiu a missão para o “Pode Entrar”.
Já o enredo do Coliseu se arrasta há mais de meio século. Entre algumas tentativas de remoção, em 2014, o então prefeito, Fernando Haddad, assinou o primeiro contrato de liberação de verba e início das construções. Desde então as obras sofreram atrasos e elevação dos custos, que a prefeitura atribui às turbulências da emergência sanitária com a Covid-19.
Não por acaso, o desafio habitacional em São Paulo é um quebra-cabeças complexo, de muitas peças. Além dos beneficiários do auxílio-aluguel, há outras 180 mil pessoas no cadastro da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab).
Segundo o Plano Municipal de Habitação (PMH), o déficit na cidade hoje é de 369 mil domicílios. Nessa conta, não estão, por exemplo, os sem-teto que perambulam pela cidade que no ano passado foram estimados em 48 mil pessoas pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua.
Esse enorme contingente de pessoas é atendido, principalmente, por programas da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), que oferece centros de acolhida e hotéis, além de unidades modulares para moradia temporária para famílias na rua há menos de três anos. Esta última é a iniciativa mais recente da pasta.
Um cenário intrincado ao qual se somam outras pessoas fora de estatísticas oficiais, que vivem em situação degradante em comunidades, áreas de risco ou de preservação ambiental. Há ainda a incontável cifra de quem vive de aluguel, mas gostaria de ter sua própria casa. Tudo em uma mesma cidade de 12 milhões de habitantes, fora a Região Metropolitana.
Estudo encomendado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), feito pela consultoria Econnit no ano passado, mapeou uma demanda habitacional acima de um milhão até 2030 em São Paulo. O informe aponta um déficit de 625 mil moradias e uma demanda de mais 460 mil moradias que deve surgir até lá. Projeta, ainda, que 92% da demanda futura virão de quem ganha menos de dez salários mínimos. A faixa com renda de até três salários mínimos responderá por 40% da procura.
— É um índice que vem se mantendo estável há alguns anos, não está aumentando — pondera Luiz França, presidente da Abrainc, acrescentando que, apesar de grande e populosa, a cidade tem espaços a serem ocupados. — A retomada do Minha Casa Minha vida pode potencializar as iniciativas.
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora do Lab Cidade, da Universidade de São Paulo, Paula Santoro observa que o mais difícil é fazer a oferta chegar à população mais carente, que não consegue pagar aluguéis altos e se afasta cada vez mais dos eixos centrais da capital.
— Habitação como mercadoria não chega a quem precisa — diz ela. — As regras de financiamento não permitem que o cidadão adquira seu imóvel porque não dispõe de renda para arcar com uma parcela de R$800.
Segundo Santoro, a prefeitura descumpre a determinação do Plano Diretor Estratégico (PDE) de que 30% dos recursos da habitação, do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), sejam aplicados em prol de interesses sociais. Reduzir o déficit habitacional da camada mais carente de São Paulo, diz ela, vai além de apenas oferecer um teto:
— A política de habitação tem que vir com uma política de emprego e renda, de saúde, transporte e educação, para que a pessoa não caia na miséria novamente.
Conhecida como “a cidade que não dorme” e “que não para”, São Paulo precisa correr para ser a cidade que “acolhe”.